Pára.
Resolve esperar pela alma um pouco. Anda com saudades dela. O ritmo do relógio, às vezes, dificulta o encontro…
Respira enquanto espera. Uma, duas, três vezes.
Conecta-se com suas entranhas, escuta as batidas do coração e, subitamente, percebe-se em um rio que flui. Um rio que é tão antigo quanto tudo que existe, que é tão abundante quanto tudo que é natureza. Uma correnteza que leva tudo para onde cada coisa deve estar. Para isso, precisa fazer as pazes com o tempo e estar ali presente. Inteira. Aos poucos, com medo e perdendo as rédeas do que acontecerá no próximo instante, tira os pés do chão e bóia - sentindo o corpo sendo levado, com cuidado, para onde deve ir. Apenas deixa-se ir. Apenas vai. Abre os olhos e rir. Gargalha. Enquanto é levada pela correnteza, brinca com uma folha que toca o seu pé. Mexe os cabelos e brinca com o movimento que têm na densidade da água. Apenas vai.
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Dissolve-se no mar.
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Lembra que - a vida - é sobre entrega e confiança. Lembra, que - a vida - é sobre lembrar que pertence.
Lembrar-se oceano.
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> E esta história será contada daqui em diante em cada aldeia, em cada povo, em cada tribo.
Elas [a mulher e a história] vão ajudar a lembrar. Auxiliar o acordar. Ser útil na travessia.​​​​​​​
"Primeira Aula de Estética" ou "Aula de coisas maiores"

Saí do trabalho, corri em casa, comi alguma coisa. Peguei o metro, cheguei na aula atrasada. Entrei na sala errada.
Agora, sim, sala certa.
Sala ampla. Umas 40 pessoas. Corri os olhos pelo espaço e, do meu lugar de atrasada na última cadeira, pude observar um pouco mais os meus novos colegas de classe.
Confesso que imaginava que seria uma sala menor, mais acolhedora e com menos gente. Mas aquilo estava sendo ainda mais interessante. As idades eram bem variadas. Pessoas sozinhas, grupos de amigas, casais que me lembraram os meus avós e a saudade chegou e acabei me distraindo nela um tempo.
O microfone do professor falhou e o barulho agudo me tirou dos meus pensamentos e análises sobre as pessoas.
Agora, sem ajuda do aparelho, o professor continua a fala apaixonada sobre Kant e a suspensão do campo do conhecimento para entrar no campo da experiência na arte. A arte não é para ser entendida. É sentida, experienciada. 
Negócio bonito danado.
Um senhor, muito senhor mesmo, levanta-se e pede desculpas. Ele não consegue ouvir bem e segue, com dificuldades e uma bengala, para a primeira cadeira da ampla sala. 
A aula continua e durante 1h30 aquele seria o primeiro aluno da turma. Questiona, pergunta, indaga e sorri. Mais que isso. Provoca. 
Provoca em mim a reflexão sobre os meus pré-conceitos tão bem estabelecidos sobre idades certas para o próprio prazer de conhecer.
A partir daí, o observo com atenção.
A aula acaba e ele, insatisfeito com o fim, continua a conversa ao pé do professor que, com um respeito quase palpável, diz que espera não ter sido chato e que, aos poucos, aquelas filosofias todas vão clareando.
O aluno exemplar sorri:
- Olhe, posso confessar-te?
O professor confirma com a cabeça curioso com o que virá. 
- Esse tipo de conversa que tivemos hoje eu tinha com os meus irmãos. Faz alguns anos que não as tinha. Desde o falecimento deles. Obrigado por isso.
O professor, visivelmente emocionado, lisonjeado e sem saber muito o que seria suposto dizer agradece.
“Até a semana que vem” diz o senhor virando-se e saindo da ampla sala com as dificuldades que a idade lhe deu e com a sabedoria que ganhou com ela. 
E eu, que por mera circunstância estava presente, ganhei uma aula de presente! 


"Sobre pegar fôlego"

Nos cruzamos na rua. Ela subindo e eu descendo. Avenida larga, largas calçadas. 
Um dia igual em Lisboa.
Eu estava completamente imersa nos meus pensamentos. Tinha acabado de resolver um assunto burocrático que há muito deveria ter sido resolvido, mas, por ser burocrático, nunca leva o tempo que precisamos que leve. 
Documentos, comprovantes, passaporte e residência na mochila. Descia a rua em direção ao metrô pensando. Pensava no tempo. 
No tempo que tantas vezes quero que ande depressa. Que outras tantas quero suspender. No tempo que nem sempre permito aos processos que vivo. No tempo que eu esqueço ser necessário para que até burocracias chatas se resolvam. 
“És um dos deuses mais lindos”… - e mais difíceis de conviver também. Convenhamos!

No meio de todos esses pensamentos, cruzo com ela subindo.

Uma senhora, tronco curvado, cabelos brancos, roupas de outono que já quase vai embora puxando um qualquer coisa com rodinhas. Foi quando olhei para o seu rosto que vi os fios transparentes no nariz. Segui com o olhar e os fios estavam ligados a tal “qualquer coisa com rodinhas”. Era um tubo de oxigênio. 

Parei.

Parei de andar, deixei os pensamentos para depois e parei de mastigar a banana que comia.
Apenas parei e observei como quem quer desvendar e organizar o que se apresenta. Senti os olhos molharem e deixei que os tantos pensamentos e sentimentos viessem aos montes, bagunçados. 
Ela carregava o tubo de oxigênio dentro de uma malinha, parecia uma daquelas malas de compras. Subia a rua lenta e tranquilamente. 
Parou na frente de uma porta, procurou as chaves na bolsa. Pegou o molho e escolheu uma. Entrou. Tudo não durou mais que alguns segundos.
E lá estava eu - estatalada.
Uma senhora estava subindo uma rua enladeirada respirando com ajuda de aparelhos carregando seu próprio oxigênio. 
O semblante dela de normalidade fez com que todos os pensamentos de piedade que também me passaram não fizessem muito sentido. Não era esse o ponto. Não era isso que eu estava vendo. 
O que eu via era uma pessoa levar consigo, de forma literal, o que a mantém viva.
O que eu vi foi o quão poético e metafórico pode ser esta cena.


Voltei a andar, a mastigar e a pensar de forma mais organizada. Desci as escadas do metrô. Coloquei o cartão, passei na catraca. Enquanto esperava continuava um tanto quanto aérea.
Conversei comigo, com perguntas e respostas, sobre aquilo tudo que se passara. Impressionante como poucos segundos podem se esticar. 
Mas teve uma pergunta que me deixei sem resposta:

Será que eu tenho levado comigo com tanta determinação, necessidade e uma pitada de poesia o que me mantém viva?


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